Amazônia

A Produção artística e o Imaginário de República
por Raimundo Nonato de Castro

Sobre o autor[1]
Ao iniciar o século XX, a recém-instalada República brasileira passava a perceber que os valores pensados por ela, começavam a ser questionados. Muitos destes valores ainda herdados do Império[2] direcionavam o modo de agir dos grupos dominantes, que colocavam no poder os seus representantes. Para que pudessem dar continuidade à política de interesse próprio. Os governantes atuavam de acordo com os prognósticos estabelecidos pela política do café-com-leite[3], que gerava uma concentração de poder nas mãos de um pequeno grupo politico, embora republicanos, estabelecendo uma espécie de racha, em relação aos interesses, entre os partidos republicanos e as oligarquias paulista e mineira.
Apesar disso, a República era vista como um regime capaz de representar a liberdade e igualdade. Chegou mesmo a ser considerada como um regime popular. E as cidades tornavam-se o berço da cidadania moderna. No entanto, com a sua implantação em 1889, podemos afirmar que a consolidação do novo regime ocorreu sem participação popular. Consolidando-se graças à vitória da ideologia liberal de caráter pré – democrático. Tendo como amparo o poder das oligarquias que viam no novo momento político a possibilidade de se manterem a frente da economia e, sobretudo, dos domínios da política.
As oligarquias impediram a implantação de uma República baseada na ampla participação popular, de caráter radical. Confrontando-se com a ideia pensada pelos positivistas radicais, que derrotados, foram então, colocados à margem do processo de implantação do novo regime politico.
Este novo regime necessitava construir a versão oficial dos fatos de maneira urgente. Para tanto, os artistas estavam diante de novas questões e novas responsabilidades. Maraliz Christo afirma que “a Proclamação da República fora um golpe militar rápido[4], neste sentido, a implantação do novo regime, deveria ser mostrada nas telas que iriam fabricar os novos heróis como elementos que a impuseram de modo pacífico, sem necessidade do uso das armas e muito menos do derramamento de sangue. Pois, segundo a autora, “a versão dos fatos se sobrepunha aos acontecimentos e muitas foram as apresentadas”[5]. Os diversos projetos de governo apresentados passaram a se revezarem nos monumentos públicos, buscando-se sempre uma desvinculação entre a implantação da república e o movimento civil.
Importante destacar que a pintura histórica de caráter pedagógica e cívica do inicio da república, apesar de numerosa vai sofrer um enfraquecimento, segundo Maraliz Christo. Pois, na República, “as últimas serão representadas sem o poder de uma convicção coletiva.” Mesmo assim, ela destaca que, Pedro Américo, “antigo pintor oficial do Império”, vai dar início a um trabalho, que procurava retratar a Conjuração Mineira e, mesmo aposentado da Escola Nacional de Belas Artes e deputado Constituinte pela Paraíba, pintou em Florença “e expusera no Rio de Janeiro, em grande formato, o corpo esquartejado de Tiradentes sobre o cadafalso”. Sendo rechaçada pela “critica que a considerou desrespeitosa ao herói, por apresentá-lo aos pedaços”[6].
Frise-se que, a imagem de “Tiradentes esquartejado” (1893) faria parte de um projeto de cinco telas, as quais deveriam narrar à trajetória da Conjuração Mineira. “Planejou executar cinco quadros, construindo uma narrativa sobre o tema em forma de tragédia: o herói seria punido por confiar nos poderosos da região mineradora, que iriam traí-los[7]. Diante disso, construiria a narrativa que seria capaz de transformar a imagem de um “Tiradentes-mártir” num elemento privilegiado, o qual passaria a condição de um “herói-vitima”.
Como não foi bem aceita, a imagem ficou esquecida por quase 50 anos. Deste modo, a imagem não permitia uma interpretação que pudesse levar à “ressureição dos ideais do herói”. Já que congela a morte. Deste modo, a imagem foi colocada num museu do interior do país, não circulando “como imagem, litografia ou litografada, não ilustrou livros sobre a história do Brasil[8]. Esta representação não era, no início da República, a imagem esperada para justificar os seus ideais.
A República nascida a partir de um golpe militar demonstrava que não queria uma participação ativa do povo. Mesmo assim, procurava envolvê-lo, de modo, que o mesmo se sentisse parte e atuante nas questões políticas republicanas. Para isso, a educação desempenharia um papel fundamental. Por intermédio de uma pedagogia cívica, capaz de criar heróis que levasse o povo a ver-se representado. Novamente, voltamos ao “Tiradentes esquartejado”, o qual representa o corpo do herói aos pedaços, como se estivesse em um altar, chamado atenção, embora estejamos diante de um quadro forte, que produz a sensação de injustiça no observador, para as barbas ruivas, bem ao lado de um crucifico, temos diante de nós uma alusão à crucificação de cristo. Há neste quadro uma apelação simbólica ao cristianismo, fato este que seria capaz de transmitir a ideia de que ali estava representado um herói nacional. Que lutou e morreu para a implantação do novo regime, de modo, que a instalação da República não ocorreu de forma completamente pacífica como havia sido colocado na imprensa do período. O povo havia participado, não diretamente, mas pelos seus heróis, que mostravam na imagem os conflitos, as lutas e os sacrifícios pelos brasileiros.
Vale ressaltar, que o pintor/historiador, do final do século XIX e início do XX, trabalhou intensamente, com objetivo de construir um ideal de nação, no qual o povo pudesse se sentir parte. Pois, “o resultado do trabalho do historiador não se traduzia em rentabilidade econômica e sim, simbólica”[9]. Assim, o que iria permanecer era uma espécie de consagração do mesmo em relação aos seus pares. Claro que pintores e historiadores constroem uma espécie de domínio-comum de pressupostos, ideais e conceitos formados na descoberta de novos mundos e no debate intelectual e político, do qual os autores se apropriam para, modificando-os ou não, aplicá-los a situações específicas e a contextos locais e, em determinados momentos.
Figura 1: Pedro Américo. Tiradentes Esquartejado, 1893, óleo s/ tela, 270 x 165 cm (Acervo Museu Mariano Procópio. Juiz de Fora – MG).
Maria Bresciani, com base na observação anterior, enfatiza que:
O apelo visual, detentor de imensa carga emotiva, é, pois, um componente essencial aos discursos que além de convencer pelo argumento lógico, devem seduzir,persuadir pela emoção produzida, ainda que subliminarmente[10].
O fragmento acima, nos permite afirmar, que as imagens são uma escrita “viva”, pois, os que não sabem ler, podem por meio delas, percorrer uma história picta, absorver ideias e receber mensagens morais. Assim, as imagens naturais podem ser utilizadas como símbolos, que adquirem um caráter perfeitamente lícito, quanto às aspirações, passando do nível dos sentidos para os dos conceitos.
Os quadros históricos tornam-se “análogos aos eventos que pretendem narrar[11]. Assim, Aldrin Figueiredo, chama atenção para a forma como a obra interage com a história, ao construir o “momento exato” no qual ocorreu a cena. Contudo para que a cena ganhe destaque o herói deve sempre ocupar lugar de destaque na tela.
Constrói-se, desta forma um poder simbólico, que segundo Bronislaw Baczko, é capaz de duplicar e reforçar a dominação já existente. Pois os símbolos buscam garantir uma obediência “pela conjugação das relações de sentido e poderio”. As telas e monumentos produzidos no Brasil, no contexto da implantação da República, destacavam-se por ser particularmente “raros e preciosos”. Portanto, diante desta situação, prevalece um imaginário capaz de estabelecer uma hierarquia entre os símbolos. Neste caso, os bens produzidos adquirem um respeito e são protegidos pelos aparelhos de repressão do estado, que os preservam em determinado lugar “que a si próprios se atribuem no campo simbólico, provam, se necessário fosse, o carácter decerto imaginário”[12]. Com isso, os monumentos que são erigidos em nome da glória e do carisma dos chefes políticos, necessitam estar expostos em praça pública. Para tanto, devem ser amparados por uma força capaz de preservá-los.
Apesar da facilidade e rapidez do aprendizado, as decifrações das imagens continuam difíceis. As imagens republicanas necessitam de textos que as esclareçam e explique os significados escondidos e não evidentes. Portanto, as imagens devem golpear com força, imprimir-se na mente e na imaginação por causa da sua força, de seu caráter estranho, inusitado ou até mesmo escandaloso.
Pierre Bourdieu destaca que estes símbolos “são os instrumentos por excelência da integração social”. Pois, se tem ao mesmo tempo uma forma de exercer a comunicação, criando entre a sociedade o “consensus”, de modo, a estabelecer uma reprodução da “ordem social”. O que se busca por fim, é o que Bourdieu chamou de “integração fictícia da sociedade”[13], já que o grupo dominante estabelece um controle sobre o dominado, passando a haver uma legitimação das distinções.
Neste caso, é importante compreender a forma como os republicanos utilizaram-se das imagens. Pois, as mesmas passaram por um processo de seleção e organização para atender a um determinado fim. Sendo necessário abordar a República em todos os setores. E, a pintura desenvolveu um papel primordial na construção dessa representação. Juntaram-se aos pintores os intelectuais da escrita, que corroboraram para a afirmação dessa nacionalidade, no momento em que se intensificou uma propaganda, a favor do modelo político implantado.
Ressalte-se que estes aspectos se coadunam dentro de uma perspectiva capaz de encontrar-se num “espaço de interacção”, onde os agentes passam a lutar, buscando impor o seu veredito de forma “imparcial”, nas palavras de Bourdieu, “para fazerem reconhecer a sua visão como objectiva”. Para tanto, o papel da imprensa vai ser fundamental, uma vez que, estão na condição de elementos e “forças que dependem da sua pertença a campos objectivamente hierarquizados e da sua posição nos campos respectivos[14].
Assim, a formação de toda uma estrutura capaz de atender aos desígnios dos republicanos, era reforçada pela força com que atuavam. Os aniversários da república são um exemplo de como o projeto de consolidação deveria ser aplicado. Ou seja, de forma repetitiva, o povo simples passava por uma espécie de domesticação, que o levaria a acreditar que era um membro essencial para os novos rumos traçados pela república.
A Província do Pará, jornal ligado ao grupo político que estava no poder, destacava em sua edição do dia 09 de novembro de 1905, que não se tratava apenas de uma festa, mas de algo maior, de característica nacional. Na qual “continuam activamente os preparativos para as grandes festas cívicas”[15]. Este jornal definia bem a sua atuação e o quanto os novos representantes estavam preocupados em construir uma imagem que levasse a compreensão dos novos caminhos adotados pelo estado a um número cada vez maior de cidadãos.
Bazcko destaca que a ideia predominante é aquela que coloca o imaginário a serviço da razão manipuladora. Portanto, se passa a fabricar elementos que são considerados armas de combate ao antigo, no que ele chama de “contra-imaginário”, mas também, destacando-se como um “instrumento de educação destinado a inculcar no espírito do povo novos valores e novos modelos formadores[16].
Portanto, as propagandas jornalísticas, do início do XX, em Belém, demonstram a necessidade de organizar as grandes festas pátrias. Cujo objetivo reside ao mesmo tempo em construir um imaginário capaz de representar a união nacional. Que passa a ser entendido como a formação do ideal que deve ser iniciado com as crianças, “vimos hontem dois uniformes – um de menino e outro de menina – dos que serão exhibidos no dia 15 pelos alumnos das escholas municipaes[17]”. Os uniformes apresentavam elementos simbólicos de identidade regional. Todavia, como se tratava de um processo de pedagogia cívica, a participação dos professores também era fundamental. Assim, a “directoria do Ensino esta convidando o respectivo professorado para, acompanhado dos alumnos que deverão cantar o hymno, no dia 15 do corrente[18]”.
Há nestas palavras uma imposição sistemática de formação de ideais. O Hino nacional, símbolo do Estado, deveria ser cantando, pelos professores e alunos, e aqueles que não soubessem ler iriam pouco a pouco decorando a letra, e após os sucessivos festejos, também o cantariam. O fato aqui era tão importante que no mesmo dia o intendente Antonio Lemos convocou uma reunião extraordinária, do Conselho Municipal, “afim de commemorar no dia 15 do corrente, o advento do regimen democrático em nossa pátria[19]”.
Temos com isso um processo de implantação de uma memória coletiva, na qual:
A conexão entre organização e conservação é parte integrante do discurso sobre a memória e inerente a ele. (...). conservar na memória os objetos naturais é a mesma coisa que classificá-los em ordem, construir tabelas e, a partir disso, pronunciar seu “verdadeiro nome[20].
Assim a propaganda política não ocorria de forma disforme, era centrada num ideal maior: a República moderna e inovadora, capaz de produzir o tão sonhado desenvolvimento político, econômico e social para o Brasil. E isso deveria estar presente em cada esquina, nos prédios públicos, nas praças e nas casas dos políticos. As imagens e monumentos foram sendo executados e implantados em lugares estratégicos, capaz de proporcionar um novo aprendizado, a cada olhar do transeunte.
Portanto, a linguagem dos signos se destaca por mostrar, algo que exerceria uma influência especial sobre a imaginação. Assim, Bazcko destaca que, “é próprio”, da imaginação, “transportar o homem para fora de si próprio”. Neste sentido, devemos entender que as relações sociais e a instituição politica, só vão se consolidar na medida em que o homem “prolongue a sua existência através das imagens que tem de si próprio e de outrem”[21].
Assim, o principio que leva o homem a agir é o “coração, suas paixões e os seus desejos”. No caso em análise, a imaginação é uma faculdade especifica dos homens, segundo Bazcko, na qual se acedem, dirigindo a linguagem “enérgica dos símbolos e dos emblemas”. Portanto:
Uma teoria da utilização desta linguagem no âmbito de um sistema de educação pública cuja pedra angular é constituída pelos ritos e pelas festas cívicas. É desse modo que se propõe instalar, no coração da vida colectiva, um imaginário especificamente político, que traduziria os princípios legitimadores do poder justo do povo soberano e dos modelos formadores do cidadão virtuoso[22].
Os objetos imponentes, as imagens chamativas, os grandes espetáculos e as emoções fortes, são os grandes responsáveis por guiar o homem. E tendo uma facilidade de ser aplicado aos indivíduos, o poder apodera-se do controle dos meios produtivos, de modo, a guiar a imaginação coletiva. Neste caso, “a fim de impregnar as mentalidades com novos valores e fortalecer a sua legitimidade, o poder tem designadamente de institucionalizar um simbolismo e um ritual novos[23].
O olhar interrogador: construção narrativa do herói
Neste sentido, o quadro histórico se destaca, pois, segundo Jorge Coli, o “olhar que interroga é sempre mais fecundo do que o conceito que o define”[24], nessa perspectiva, a imagem engloba a todos, numa articulação entre os elementos que a compõem e “os princípios da narração”[25], construindo uma ideia que seria reforçada pelas explicações impostas pela imprensa. Surge com isso, o mito, a lenda, a história oficial, em suma, um herói capaz de agregar o povo e os preceitos políticos da República.
Portanto, o impacto de uma obra é capaz de exercer uma força externa e interna sobre o observador, sendo multiplicada de maneira explicita e indireta, constituindo-se numa representação ideológica. Embora os pintores deste período estivessem respaldados numa produção acadêmica, que se justificavam pelo domínio da ciência, que se mostravam por meio de um trabalho metódico e indutivo que procurava organizar os detalhes e deles extrair os significados.
Justifica-se essa forma de construção do herói e, portanto, da consolidação da República, por meio de uma construção narrativa da identidade nacional. Claro que “o pintor-heroe – explorador e poeta – crearia uma obra nacional e eterna”[26]. Neste sentido, as elites triunfantes deram início a encomendas, que deveria reproduzir momentos estratégicos, com narrativas oficiais, por meio de uma prática de produção de imagens, capaz de representar os sentidos comuns, de maneira, a povoar a história com signos, que repercutiriam o seu poder e o novo momento político vivido no Brasil.
Além da crescente preocupação em construir um imaginário de República, fazia-se necessário reformar ou mesmo construir novos prédios públicos, nos quais as pinturas e esculturas deveriam está em harmonia com a decoração interior. Essa preocupação levou ao surgimento de um gênero de composições de “salões”, que se tornaram uma espécie de exposições particulares no interior dos imóveis.
No Pará, o Palácio do Governo, ao ser reformado, teve várias obras adquiridas, e direcionadas aos novos ambientes, que apresentavam decorações distintas, que iam desde a sala estilo império, ao salão renascence. Pois, de acordo com o projeto republicano, a “releitura” da história do Brasil, e de seu culto as virtudes e valores nacionais, levaram os governos estaduais a buscar uma valorização aos eventos e personagens regionais, desde que estivessem carregados de importância simbólica.
Neste sentido, a história tornou-se um assunto de Estado. Figueiredo enfatiza que a “pintura foi transformada em tema de interesse popular”. O estado passou a conceder ao pintor uma proteção, o mecenato. No entanto, era necessário que este fosse capaz de atender aos objetivos do estado. A pintura de história não era algo simples, devendo ser demonstrada pelo domínio amplo da pesquisa histórica. Portanto, passava por uma análise inventiva e subjetiva.
Antonio Parreiras destaca-se, neste sentido, por imaginar e fabricar maneiras de representar a nação. José Mauricio Saldanha Álvarez, afirma que foi na fase mais madura do pintor que ele passou a produzir elementos constitutivos do imaginário republicano. Portanto, as imagens, enquanto criações humanas se destacam por poder “testemunhar o que não pode ser dito com palavras”[27], assim:
O discurso artístico produzido por Parreiras deve ser mediado dentro da exiguidade do circuito das ideias liberais e do mercado dos bens simbólicos no Brasil no século XIX, e nas primeiras décadas do século XX.Ao fim e ao cabo de uma longa existência, nosso artista legou à posteridade inúmeras pinturas da paisagem juntamente com cenas históricas encomendadas pelas elites que, graças a esses atos de imagem, inculcava no grande público o ideal de supremacia de grupo e exemplos de virtú cívica de que se julgava detentora. [28]
Figura: 2. Detalhe do Salão Renascença[29]
Museu Histórico do Estado do Pará. Foto. Paulo Cezar.
A república procura construir a sua imagem associada aos avanços tecnológicos. Contudo, o excludente iria se mostrar e, a urbanização das cidades daria uma ideia dos caminhos traçados pelos republicanos. Milton Hatoum enfatiza que “a cidade embelezada serviu sempre para um punhado de privilegiados: uma elite que desfrutou de uma infraestrutura urbana moderna, assim como das atividades culturais e de lazer”.[30]
O que parecia ter sido iniciado de forma harmoniosa, entre os entes da federação, produziu descontentamentos, com relação às tomadas de decisão concentradas nas mãos dos Partidos Republicano Paulista - PRP e Republicano Mineiro – PRM. Devemos considerar que o período aqui analisado coincidia com a produção e valorização do principal produto exportado pelo Brasil: o café. O que de certa maneira permitia a manutenção das estruturas agrárias dominantes naquela parte do Brasil.
Pois, como sabemos, a implantação da República se fez, nas palavras de Manoel Bomfim, “com a participação de chefes de ocasião, quase todos estranhos à propaganda”[31]. Neste sentido, não houve um ensaio de resistência, a nação brasileira recebeu a República num tom natural, ou seja, sem a participação do povo. E a República destaca-se por ter reclamado para si as ideias de justiça, liberdade e competência administrativa. Contudo, o que se observou foi a “abolição da monarquia, com a federação das antigas províncias”[32] e ao mesmo tempo “as misérias da vida interna do país se agravaram”[33].
Ora, apesar de haver reclamado os avanços possíveis, já que a modernidade se apresentava, ocorreu uma centralização, nas mãos das oligarquias, sendo que a “democracia de mentira”[34] assentou-se nos valores republicanos determinados pelos donos do poder de São Paulo e Minas Gerais.
Embora, o novo regime trouxesse para a população expectativas quanto à possibilidade de mudanças, os velhos problemas estruturais, como por exemplo, de abastecimento de água, de saneamento e higiene, haviam sido agravados de maneira considerável no inicio da República. O que resultou em surtos violentos de epidemias, em especial, na capital, Rio de Janeiro[35]. No entanto, os problemas mais corriqueiros e que colocavam em xeque os caminhos da República eram os de caráter econômicos. Já que havia um constante aumento no custo de vida, que eram agravados pela imigração, que “ampliava a oferta de mão-de-obra e acirrava a luta pelos escassos empregos disponíveis[36].
Diante dessa situação, ao assumir o governo no Pará, os republicanos, encontravam-se diante de uma grave crise econômica, que afirmavam ser uma das piores heranças do Império. Este fato, segundo William Gaia Farias, serviu de justificativa para que “o governo provisório de Justo Chermont demitisse vários funcionários da Fazenda Estadual”[37]. Tornava-se uma constante na administração republicana a atribuição à Monarquia da difícil situação financeira vivenciada pelo poder republicano.
Mais uma vez, recorremos a Bazcko, para entendermos como foi sendo criado um imaginário capaz de consolidar o novo regime. Haja vista, a necessidade de renegar o passado considerado atrasado. Assim, elementos construtivos da identidade nacional, poderia organizar a sociedade, valorizando os princípios necessários para a consolidação do regime instalado, neste sentido:
A Revolução Francesa, em particular, constitui um exemplo notável da instalação de um novo imaginário social que, através dos seus símbolos, cultos e ritos, simultaneamente traduz e guia o fervor colectivo, ao mesmo tempo que consolida o novo consenso estabelecido com base numa nova organização social.[38]
O povo não tinha representação política e, a ele não era permitido à participação das decisões politica. Já que, a mesma era considerada assunto de Estado maior, que se fazia representar pelas classes dominantes. Passando, o povo, à condição de massa de manobra. Fato este, que com a promulgação da Constituição de 1891, apenas 20% da população teria direito ao voto, ocorrendo à exclusão de 80% da mesma. Resultado, o novo regime pouco, ou quase nada ampliava a participação da população nos debates e decisões políticas[39].
Portanto, podemos afirmar que havia uma forte contradição entre as ideias pregadas pelos propagandistas republicanos, já que os princípios da democracia, não foram estendidos a todos. Verificando-se um governo opressor e violento no trato aos adversários e, sobretudo, contra a população empobrecida.
O novo momento político apresentava ideias que por serem consideradas adequadas, mesmo que temporariamente, levava a população a crer que estava diante de um processo de avanço da humanidade. O progresso tão defendido pelos positivistas era utilizado para justificar a consolidação da República, pois “O que caracterizou sobretudo a firmeza da Republica e a conformidade da Nação com ella, foi a confiança geral que se manifestou desde os primeiros dias da nossa organização[40]. Portanto, os republicanos passaram a utilizar-se das interpretações da história, demonstrando que a nação encontrava-se no processo de evolução lenta e indefinidamente numa direção desejável.
As idéias representam anseios humanos e exercem um poder decisivo na história. Algumas delas – como justiça, tolerância, igualdade, mercado, livre-consciência e socialismo – dependem de uma elaboração intelectual mais refinada. (...)[41].
Estas ideias, direcionadas, vão ser definidas por Terry Eagleton[42], enquanto um processo de significados, signos e valores da vida social. Ou como um corpo de ideias característico de um determinado grupo ou classe social. Neste sentido, o objetivo político é o de conter algumas formas de conflitos sociais que venham a ocorrer, quando determinados grupos passam a ocupar o poder. Assim a ideologia como discurso “interessado”, requer a mesma qualificação que a caracteriza como uma questão de poder. No entanto, esses valores serão importantes, quando considerados centrais a toda uma ordem social. Isso determina a forma como os grupos estabelecem os seus objetivos e os resultados que procuram obter. Seja, pela implantação de um imaginário, seja para sua manutenção nas estruturas dominantes de poder.

[1] Mestrando em História pela Universidade Federal do Pará, sob orientação do prof. Dr. Aldrin Moura de Figueiredo. Email: castro_nonato@hotmail.com. Agradecemos à Bolsa de Estudos concedida pela UEPA.
[2] Giselle Martins Venâncio destaca que no Brasil “o processo de invenção/construção da nação teve inicio nas primeiras décadas do século XIX. Romper com a situação colonial e estabelecer uma identidade distinta da do colonizador foi uma importante ação a que se dedicaram os homens daquele período. Era preciso criar uma identidade brasileira. Era necessário descobrir ou estabelecer hábitos, costumes, expressões artísticas e narrativas, uma história e uma mitologia de heróis nacionais que distinguissem o brasileiro do colonizador português forjando uma identidade nacional positiva e diversa capaz de plasmar o consenso social. Se a nação é resultado de uma genealogia histórica, urgia estabelecê-la, elegendo na sucessão das nações possíveis, a invenção ideal.”. Cf.: Venâncio, Giselle Martins. Pintando o Brasil: artes plásticas e construção da identidade nacional (1816 – 1922). In: Revista História em reflexão: Vol. 2 n. 4 – UFGD – Dourados jul/dez 2008. P. 3
[3]A política do café-com-leite foi um acordo firmado entre as oligarquias estaduais e o governo federal durante a República Velha para que os presidentes da República fossem escolhidos entre os políticos de São Paulo e Minas Gerais. Portanto, ora o presidente seria paulista, ora mineiro. O nome desse acordo era uma alusão à economia de São Paulo e Minas, grandes produtores, respectivamente, de café e leite. Além disso, eram estados bastante populosos, fortes politicamente e berços de duas das principais legendas republicanas: o Partido Republicano Paulista e o Partido Republicano Mineiro.
[4] Christo, M Castro Vieira de. (2009). A pintura de história no Brasil do século XIX: Panorama introdutório. Arbor, 185(740): 1147-1168 doi:10.3989/arbor. 2009. 740n1082. p. 1160. Disponível em: http://arbor.revistas.csic.es/index.php/arbor/article/view/386/387, acesso em 14 de setembro de 2011.
[5]Christo, M Castro Vieira de. (2009). A pintura de história no Brasil do século XIX: Panorama introdutório. Arbor, 185(740): 1147-1168 doi:10.3989/arbor. 2009. 740n1082. p. 1160. Disponível em: http://arbor.revistas.csic.es/index.php/arbor/article/view/386/387, acesso em 14 de setembro de 2011.
[6] Christo, M Castro Vieira de. (2009). A pintura de história no Brasil do século XIX: Panorama introdutório. Arbor, 185(740): 1147-1168 doi:10.3989/arbor. 2009. 740n1082. p. 1161. Disponível em: http://arbor.revistas.csic.es/index.php/arbor/article/view/386/387, acesso em 14 de setembro de 2011.
[7] Christo, M Castro Vieira de. (2009). A pintura de história no Brasil do século XIX: Panorama introdutório. Arbor, 185(740): 1147-1168 doi:10.3989/arbor. 2009.740n1082. p. 1162. Disponível em: http://arbor.revistas.csic.es/index.php/arbor/article/view/386/387, acesso em 14 de setembro de 2011.
[8] Christo, M Castro Vieira de. (2009). A pintura de história no Brasil do século XIX: Panorama introdutório. Arbor, 185(740): 1147-1168 doi:10.3989/arbor.2009.740n1082. p. 1162. Disponível em: http://arbor.revistas.csic.es/index.php/arbor/article/view/386/387, acesso em 14 de setembro de 2011.
[9]Cf.: Ferreira, Antonio Celso. O historiador sem tempo. In: Ferreira, Antonio Celso, Bezerra, Holien Gonçalves, Luca, Tania Regina de. O historiador e seu tempo: encontros com a história. São Paulo: Editora da UNESP: ANPUH, 2008. p. 22
[10] Cf.: Bresciani, Maria Stella Martins. Oliveira Vianna entre interpretes do Brasil. Convergências e discordâncias. In: Ferreira, Antonio Celso, Bezerra, Holien Gonçalves, Luca, Tania Regina de. O historiador e seu tempo: encontros com a história. São Paulo: Editora da UNESP: ANPUH, 2008. p. 27.
[11] Figueiredo, Aldrin Moura de. O centenário mestiço: Theodoro Braga e a pintura histórica da fundação da Amazõnia, 1908-2008. pp. 395-401 In: Cavalcanti, Ana Maria Tavares, Dazzi, Camila, Valle, Arthur. Oitocentos: arte brasileira do império à primeira república. Rio de Janeiro: EAB-UFRJ/DezenoveVinte, 2008.
[12]Cf.: Baczko, Bronislaw. A imaginação social. In: Leach, Edmund et Alii. Anthropos-Homem , Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 298-299.
[13]Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 10.
[14] Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 55.
[15] Belém, 09 de novembro de 1905. A Província do Pará – Festas republicanas. p. 1.
[16]Cf.: Baczko, Bronislaw. A imaginação social. In: Leach, Edmund et Alii , Anthropos-Homem , Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 301.
[17] Belém, 09 de novembro de 1905. A Província do Pará – Festas republicanas. P. 1.
[18] Idem, ibidem.
[19] Idem, ibidem.
[20] Cf.: Rossi, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento: seis ensaios da história das idéias. São Paulo: editora da UNESP, 2010. p.90
[21] Cf.: Baczko, Bronislaw. A imaginação social. In: Leach, Edmund et Alii. Anthropos-Homem. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 301.
[22] Idem. Ibidem.
[23] Idem. p. 302.
[24]Cf.: Coli, Jorge. Como estudar a arte brasileira do século XIX? São Paulo: Editora Senac / São Paulo, 2005. p. 11.
[25] Idem, p. 18
[26] Cf.: Pinheiro, João Ribeiro. História da pintura brasileira. Rio de Janeiro: Casa Leuzinger, 1931. p. 98
[27] Burke, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. São Paulo: Edusc, 2004. p.38.
[28] Álvarez, José Maurício Saldanha . “Era terra do Brasil”: Representação da nação brasileira na obra de Antônio Parreiras. 19&20 , Rio de Janeiro, v. IV, n. 2, abr. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/ap_jmsa.htm>.
[29] Segundo Aldrin Figueiredo este era “o mais importante Salão do Palácio dos Governadores foi decorado, aproveitando-se o forro em aço fundido, proveniente dos Estados Unidos, adquirido na administração de Lauro Sodré, em 1894. A decoração foi feita por Joseph Cassé que utilizou como cor de fundo o glibeu escuro. O monograma do Estado do Pará em letras douradas é repetido em todas as paredes, com motivos de tapeçaria, entre arabescos ao centro de ramos de café floridos, simbolizando a entrada do principal concorrente da borracha nas exportações brasileiras”. Na parede em detalhe, foi o local escolhido para abrigar a tela “A Conquista do Amazonas”, encomendada pelo Governador Augusto Montenegro para decorar este salão. Catalogo da exposição do MHEP, 2008.
[30] Hatoum, Milton. Manaus: o impasse da modernidade. In: Prefácio. Dias, Edinea Mascarenhas. A Ilusão do Fausto – Manaus – 1890-1920. Manaus: Editora Valer, 2007. p. 12.
[31]Cf.: Bomfim. Manoel. O Brasil. Op. Cit. p 311.
[32] Idem, Ibidem.
[33] Idem, Ibidem.
[34] Idem, Ibidem.
[35] Sobre as epidemias que violentamente surgiram no Rio de Janeiro no Inicio da República. Cf.: Chalhoub, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo, Companhia das letras, 1996. Cf.: Pereira, Leonardo. As Barricadas da saúde: vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira República. Cf.: Carvalho, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
[36] Idem. p. 21.
[37] Cf.: Farias, William Gaia. A construção da República no Pará (1886-1897). Tese (Doutorado) - Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2005. p. 104.
[38] Cf.: Baczko, Bronislaw. A imaginação social. In: Leach, Edmund et Alii. Anthropos-Homem. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 307.
[39] O artigo 70 da Constituição de 1891, definia enquanto eleitores apenas aqueles cidadãos maiores de 21 anos e que se alistasse na forma da Lei, contudo, o § 1º, estabelecia que não podiam ser alistados os mendigos, analfabetos, praças de fé e religiosos. Segundo o censo de 1890, a população brasileira era composta de 14.333.915 habitantes, sendo 82% deste total considerados analfabetos, de acordo com Annuario estatistico do Brazil 1908 - 1912. Rio de Janeiro: Directoria Geral de Estatistica, v. 1-3, 1916-1927.
[40] Brasil. Mensagem dirigida ao Congresso Nacional pelo Generalíssimo Manoel Deodoro da Fonseca (chefe do governo provisório). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890. p. 10
[41] Cf.: Dupas, Gilberto. O mito do progresso; ou progresso como ideologia. São Paulo: Editora UNESP, 2006. p. 29.
[42] Cf.: Eagleton, Terry. Ideologia. Tradução: Sivana Vieira, Luis Carlos Borges. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista: Editora Boitempo, 1997.